sexta-feira, 20 de novembro de 2015

GRUPO DE ESTUDO COSMOVISÃO CRISTÃ - 4º ENCONTRO

Nosso 4º encontro será dia 05/12/2015 (primeiro sábado de dezembro), as 16:30 horas, na AD de Soledade 2, rua Angra dos Reis, S/N, Natal-RN.

Para o terceiro encontro do grupo de estudo Cosmovisão Cristã, vamos ampliar a discussão sobre MORALIDADE, retomando uma questão: Como um Deus amoroso ordena a morte de todos os cananeus no Antigo Testamento?. Tomaremos por base a leitura do texto de Willian Lane Craig: O extermínio dos cananeus. Você pode ler neste link (O extermínio dos Cananeus), ou por aqui mesmo.

O extermínio dos Cananeus – Willian Lane Craig
PERGUNTA 1
Nos fóruns, algumas questões muito boas têm sido levantadas sobre a questão da ordem de Deus para que os judeus cometessem “genocídio” contra os povos da terra prometida. Como você apontou em alguns dos seus escritos, esse ato não se encaixa no conceito ocidental de Deus sendo o gentil “Papai do Céu”. Ora, nós podemos certamente encontrar justificativas para aquelas pessoas estarem sob o julgamento de Deus por causa dos seus pecados, por sua idolatria, por sacrificarem suas crianças, etc., Mas uma questão mais difícil é a matança de crianças e bebês. Se as crianças são pequenas, assim como os bebês, elas são inocentes dos pecados cometidos por sua sociedade. Como nós conciliamos essa ordem de Deus para matar as crianças com o conceito de Sua santidade?
PERGUNTA 2

Eu ouvi você justificar a violência no Velho Testamento com base em que Deus usou o exército israelita para julgar os cananeus e sua eliminação pelos Israelitas é moralmente certa já que eles estão obedecendo a ordem de Deus (seria errado eles não obedecerem a ordem de Deus de eliminar os cananeus). Isso se parece um pouco com a maneira como os muçulmanos definem a moralidade e justificam a violência de Maomé e outros atos moralmente questionáveis (muçulmanos definem moralidade como fazer a vontade de Deus). Você vê alguma diferença entre a sua justificação para a violência do Velho Testamento e a justificação islâmica de Maomé e versos violentos do Alcorão? A violência e os atos moralmente questionáveis e os versos do Alcorão são um bom argumento quando se trata de muçulmanos?
Dr. Craig Responde:
"De acordo com o Pentateuco (os primeiros cinco livros do Velho Testamento), quando Deus invocou Seu povo da escravidão no Egito e de volta para a terra de seus antepassados, ele os ordenou que matassem todos os clãs cananeus que viviam na terra (Dt. 7.1-2; 20.16-18). A destruição era para ser completa: cada homem, mulher e criança, eram para ser mortos. O livro de Josué nos conta a história de Israel cumprindo a ordem de Deus cidade após cidade por toda Canaã.
Essas histórias ofendem nossas sensibilidades morais. Ironicamente, porém, nossas sensibilidades morais no ocidente têm sido grandemente, e para muitas pessoas, inconscientemente moldadas por nossa herança Judaico-Cristã, que nos ensinou o valor intrínseco dos seres humanos, a importância de agir justamente e não arbitrariamente, e a necessidade de uma punição adequada ao crime. A própria Bíblia inculca os valores que essas histórias parecem violar.
A ordem para matar todos os povos cananeus é chocante precisamente porque parece não combinar com o retrato de Jeová, o Deus de Israel, que é pintado nas Escrituras Hebraicas. Ao contrário da retórica injuriosa de alguns como Richard Dawkins, o Deus da Bíblia Hebraica é um Deus de justiça, paciente e compassivo.
Você não pode ler os profetas do Velho Testamento sem perceber o profundo cuidado de Deus com pobres, os oprimidos, os abusados, os orfanados, e assim por diante. Deus exige leis justas e juízes justos. Ele literalmente luta para que as pessoas se arrependam de seus caminhos injustos para que Ele não tenha de julgá-los. “Assim como vivo eu, diz o Senhor DEUS, que não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho, e viva” (Ez. 33.11).
Ele envia um profeta até mesmo à cidade pagã de Nínive por causa de Sua misericórdia pelos seus habitantes, “que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda” (Jonas 4.11). O próprio Pentateuco contém os Dez Mandamentos, um dos maiores códigos morais antigos, que moldou a sociedade ocidental. Até mesmo a restrição “um olho por um olho e um dente por um dente” não era uma prescrição de vingança, mas uma limitação para a punição excessiva de um crime, servindo para moderar a violência.
O juízo de Deus não tem nada de arbitrário. Quando o Senhor anuncia Sua intenção de julgar Sodoma e Gomorra, Abraão ousadamente pergunta,
“Destruirás também o justo com o ímpio? Se porventura houver cinqüenta justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinqüenta justos que estão dentro dela? Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria justiça o Juiz de toda a terra?” (Gn. 18.25).
Como um mercador do Oriente Médio barganhando por uma pechincha, Abraão continuamente diminui seu preço, e a cada vez Deus responde sem hesitação, garantindo a Abraão que se houvesse dez justos na cidade, Ele não a destruiria por causa deles.
Então, o que Jeová está fazendo ao ordenar que os exércitos de Israel exterminem os Cananeus? É precisamente por esperarmos que Javé aja justamente e com compaixão que achamos essas histórias difíceis de entender. Como Ele pode ordenar que soldados massacrem crianças?
Ora, antes de tentar responder essa difícil questão, seria bom que parássemos para nos perguntarmos o que está em jogo aqui. Suponha que concordemos que se Deus (que é perfeitamente bom) existe, Ele não poderia ter dado tal ordem. O que se segue? Que Jesus não ressurgiu dos mortos? Que Deus não existe? Dificilmente! Então, qual deveria ser o problema?
Eu frequentemente vejo apresentadores levantar essa questão como uma refutação do argumento moral para a existência de Deus. Mas isso é claramente incorreto. A declaração de que Deus não poderia ter dado tal ordem não falsifica ou elimina nenhuma das duas premissas do argumento moral que eu defendi:
1- Se Deus não existe, valores morais objetivos não existem.
2- Valores morais objetivos existem.
3- Portanto, Deus existe.
Na verdade, ao pensar que Deus fez algo moralmente errado ao comandar o extermínio dos cananeus, ele afirma a premissa número 2. Então, qual é o problema?
O problema, parece-me, é que se Deus não fosse capaz de dar tal ordem, então as histórias bíblicas devem ser falsas. Ou os incidentes nunca realmente aconteceram, mas são apenas parte do folclore de Israel ou então, se aconteceram, Israel os executou em um fervor nacionalista, pensando que Deus estava ao seu lado, declarando que Deus havia ordenado que cometessem essas atrocidades, quando na verdade Ele não ordenara. Em outras palavras, esse problema é, na verdade, uma objeção à inerrância bíblica.
De fato, ironicamente, muito críticos do Velho Testamento são céticos quanto à ocorrência dos eventos da conquista de Canaã. Eles consideram essas histórias como parte das lendas da fundação de Israel, semelhantes aos mitos de Rômulo e Remo na fundação de Roma. Para esses críticos o problema de Deus pronunciar tal comando desaparece.
Agora, isso põe a questão em uma perspectiva um tanto diferente! A questão da inerrância bíblica é importante, mas não tanto quanto a existência de Deus ou a deidade de Cristo! Se nós cristãos não pudermos achar uma boa resposta para a questão diante de nós e formos, então, persuadidos que tal ordem é inconsistente com a natureza de Deus, então teremos que abrir mão da inerrância bíblica. Mas nós não deveríamos deixar o descrente que levanta essa questão sair pensando que ela implica em mais do que implica.
Eu acredito que um bom começo nesse problema é declarar nossa teoria ética que fundamenta nossos julgamentos morais. De acordo com a versão da ética do mandamento divino que eu tenho defendido, nossas regras morais são constituídas pelas ordens de um Deus santo e amoroso. Uma vez que Deus não dá ordens a si mesmo, Ele não tem deveres morais para cumprir. Ele certamente não está sujeito às mesmas obrigações morais que nós. Por exemplo, eu não tenho o direito de tirar uma vida inocente. Seria homicídio se eu fizesse isso. Mas Deus não tem essa proibição. Ele pode dar e tomar a vida segundo a Sua escolha. Todos nós reconhecemos isso quando acusamos alguma autoridade que, arbitrariamente tira uma vida, de “estar brincando de Deus.” As autoridades humanas se apropriam de direitos que pertencem somente a Deus. Deus não está sob obrigação nenhuma de aumentar minha vida em um segundo. Se Ele quiser me fulminar agora mesmo, é prerrogativa d’Ele.
A implicação disso é que Deus tem o direito de tirar a vida dos cananeus quando Ele achar adequado. Quanto tempo eles vivem e quando eles morrem é decisão d’Ele.
Então, o problema não é que Deus deu um fim às vidas dos cananeus. O problema é que Ele ordenou que os soldados Israelitas dessem um fim a eles. Isso não seria como ordenar que alguém cometesse assassinato? Não, não é. Em vez disso, uma vez que nossos deveres morais são determinados pelas ordens de Deus, ordenar que alguém fizesse isso na ausência da ordem divina é que teria sido assassinato. O ato foi moralmente obrigatório para os soldados Israelitas em virtude da ordem de Deus mesmo que fosse errado fazê-lo em iniciativa própria.
Na teoria do mandamento divino, então, Deus tem o direito de ordenar um ato, que, na ausência de uma ordem divina, teria sido pecado, mas que agora é moralmente obrigatório em virtude daquela ordem.
Certo; mas não é essa ordem contrária à natureza de Deus? Bem, vamos analisar o caso mais de perto. Talvez seja significativo que a história da destruição de Sodoma por Javé — junto com Suas solenes garantias a Abraão de que se houvesse pelo menos dez justos em Sodoma, a cidade não teria sido destruída — forma uma parte do cenário para a conquista de Canaã e a ordem de Javé para que fossem destruídas as cidades lá. A implicação é que os cananeus não são pessoas justas e estavam sob o julgamento de Deus.
Na verdade, antes da escravidão de Israel no Egito, Deus diz a Abraão:
“Sabes, de certo, que peregrina será a tua descendência em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos... e tornará para cá; porque a medida da injustiça dos Amorreus [um dos clãs cananeus] não está ainda cheia.” (Gn. 15.13,16)
Pense nisso! Deus suspende Seu julgamento dos clãs cananeus por 400 anos porque sua malignidade não havia ainda alcançado o ponto de intolerabilidade! Esse é o Deus paciente que conhecemos nas Escrituras Hebraicas. Ele até mesmo permite que seu próprio povo escolhido sofra em escravidão por quatro séculos antes de determinar que os povos cananeus estejam prontos para o julgamento e chamar Seu povo do Egito.
Na época de sua destruição, a cultura cananéia era, na verdade, pervertida e cruel, se envolvendo em práticas como prostituição ritual e até mesmo sacrifício infantil. Os cananeus deviam ser destruídos “para que não vos ensinem a fazer conforme a todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, e pequeis contra o SENHOR vosso Deus” (Dt. 20.18). Deus tem motivos morais suficientes para Seu julgamento sobre Canaã, e Israel foi meramente o instrumento de Sua justiça, assim como séculos depois Deus usaria as nações pagãs da Assíria e Babilônia para julgar Israel.
Mas, por que tirar a vida de crianças inocentes? A terrível totalidade da destruição foi, sem dúvida, relacionada à proibição da assimilação de noções pagãs por Israel. Ao ordenar a completa destruição dos cananeus, o Senhor diz, “Nem te aparentarás com elas; não darás tuas filhas a seus filhos, e não tomarás suas filhas para teus filhos; Pois fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros deuses” (Dt. 7.3,4). Essa ordem faz parte da complexa rede de leis rituais judaicas para separar as práticas puras das impuras. Para a mentalidade ocidental contemporânea, muitos dos regulamentos na lei do Velho Testamento parecem absolutamente bizarros e sem sentido: não misturar linho com lã, não usar os mesmos recipientes para produtos de carne e leite, etc. O ponto principal desses regulamentos é proibir vários tipos de mistura. Linhas claras de distinção estão sendo feitas: isso, e não aquilo. Isso servia como uma diária e tangível lembrança de que Israel é um povo especial separado para o próprio Deus.
Eu conversei uma vez com um missionário hindu que me disse que a mentalidade oriental tem uma profunda tendência para a mistura. Ele disse que os hindus, ao ouvirem o evangelho, sorriem e dizem, “Sub ehki eh, sahib, sub ehki eh!” (“Tudo é Um, sahib, Tudo é Um! [hindus, perdoem minha transliteração!]). Isso fez com que fosse quase impossível alcançá-los, porque até mesmo contradições lógicas eram incorporadas no todo. Ele disse que acreditava que a razão por que Deus deu a Israel tantas ordens arbitrárias sobre puro e impuro era ensiná-los a Lei da Contradição!
Ao estabelecer essas dicotomias fortes e duras, Deus ensinou Israel que qualquer assimilação da idolatria pagã é intolerável. Foi a Sua maneira de preservar a saúde espiritual e a posteridade de Israel. Deus sabia que se essas crianças cananéias fossem mantidas vivas, elas significariam a desintegração de Israel. A matança das crianças cananéias não apenas serviu para prevenir a assimilação da identidade cananéia mas também serviu como uma ilustração esmagadora e tangível de Israel ser separada exclusivamente para Deus.
Além disso, se nós cremos, como de fato cremos, que a graça de Deus é dada a quem morre na infância ou como crianças pequenas, a morte dessas crianças foi na verdade a sua salvação. Nós somos tão casados a uma perspectiva terrena e naturalista que esquecemos que aqueles que morreram tiveram a felicidade de deixar esta terra para uma alegria incomparável no Paraíso. Portanto, Deus não fez a essas crianças nenhum mal ao tirar suas vidas.
Então, contra quem Deus errou ao ordenar a destruição dos cananeus? Não contra os cananeus adultos, pois eles eram corruptos e merecedores do julgamento. Nem contra as crianças, pois elas herdaram a vida eterna. Então, quem está ofendido? Ironicamente, eu acho que a parte mais difícil deste debate é o aparente erro cometido contra os próprios soldados israelitas. Você pode imaginar como seria ter que entrar em alguma casa e matar uma mulher aterrorizada e suas crianças? O efeito brutalizante sobre esses soldados israelitas é perturbador.
Mas então, novamente, estamos pensando de um ponto de vista cristianizado e ocidental. Para pessoas do mundo antigo, a vida já era brutal. A guerra e a violência eram um fato da vida para pessoas vivendo no antigo Oriente Médio. Uma evidência para isso é que as pessoas que contavam essas histórias aparentemente não pensaram nada sobre o que os soldados israelitas foram ordenados fazer (especialmente se essas foram lendas sobre a fundação da nação). Ninguém estava torcendo as mãos por causa dos soldados terem que matar os cananeus; esses que fizeram isso eram heróis nacionais.
Além disso, eu volto ao meu ponto acima. Nada poderia ilustrar tão bem para os israelitas a seriedade de seu chamado como um povo separado somente para Deus. Javé não é alguém com quem se brincar. Ele está falando sério e, se Israel apostatar, a mesma coisa poderia acontecer com eles. Como C.S. Lewis coloca, “Aslan não é um leão domado.”
Ora, como isso se relaciona à jihad islâmica? O Islã vê a violência como a maneira de propagar a fé muçulmana. O Islã divide o mundo em dois campos: a dar al-Islam (Casa de Submissão) e a dar al-harb (Casa de Guerra). A primeira são as terras que foram submetidas pelo Islã; a última são as nações que ainda não foram submetidas. É assim que o Islã realmente vê o mundo!
Em contraste, a conquista de Canaã representou o julgamento de Deus sobre esses povos. O propósito não foi convertê-los ao judaísmo! A guerra não estava sendo usada como um instrumento de propagação da fé judaica. Além disso, o massacre dos cananeus representou uma circunstância histórica incomum, não uma maneira regular de comportamento.
O problema com o Islã, então, não é que este tem a teoria moral errada; mas sim que tem o Deus errado. Se os muçulmanos acham que nossos deveres morais são constituídos pelas ordens de Deus, então eu concordo com eles. Mas muçulmanos e cristãos diferem radicalmente quanto à natureza de Deus. Os cristãos acreditam que Deus é todo-amoroso, enquanto os muçulmanos acreditam que Deus ama apenas os muçulmanos. Alá não tem amor por descrentes e pecadores. Então, eles podem ser mortos indiscriminadamente. Além disso, no Islã a onipotência de Deus pisa em tudo, até mesmo em Sua própria natureza. Ele é, portanto, absolutamente arbitrário em Seu tratamento com a humanidade. Em contraste, os cristãos sustentam que a natureza santa e amorosa de Deus determina o que Ele ordena.
A questão, então, não é “qual é a teoria moral correta?”, mas “qual é o Deus verdadeiro?”
William Lane Craig

terça-feira, 20 de outubro de 2015

GRUPO DE ESTUDO COSMOVISÃO CRISTÃ - 3º ENCONTRO

Nosso 3º encontro será dia 14/11/2015 (segundo sábado de novembro), as 16:30 horas, na AD de Soledade 2, rua Angra dos Reis, S/N, Natal-RN.

Para o terceiro encontro do grupo de estudo Cosmovisão Cristã, vamos tomar como texto base a primeira parte do livro Cristianismo Puro e Simples de C. S. Lewis - Livro I - O certo e o errado como chaves para a compreensão do sentido do universo. Abordaremos o argumento moral para a existência de Deus e questões como: se Deus é bom, porque o mal existe? 
Abaixo, segue o texto de Lewis. (o texto é longo, mas extremamente válido e de boa leitura).


O CERTO E O ERRADO COMO CHAVES PARA A COMPREENSÃO DO SENTIDO DO UNIVERSO

1. A LEI DA NATUREZA HUMANA
Todo o mundo já viu pessoas discutindo. Às vezes, a discussão soa engraçada; em outras, apenas desagradável. Como quer que soe, acredito que podemos aprender algo muito importante ouvindo os tipos de coisas que elas dizem. Dizem, por exemplo: "Você gostaria que fizessem o mesmo com você?"; "Desculpe, esse banco é meu, eu sentei aqui primeiro"; "Deixe-o em paz, que ele não lhe está fazendo nada de mal"; "Por que você teve de entrar na frente?"; "Dê-me um pedaço da sua laranja, pois eu lhe dei um pedaço da minha"; e "Poxa, você prometeu!" Essas coisas são ditas todos os dias por pessoas cultas e incultas, por adultos e crianças.

O que me interessa em todos estes comentários é que o homem que os faz não está apenas expressando o quanto lhe desagrada o comportamento de seu interlocutor; está também fazendo apelo a um padrão de comportamento que o outro deveria conhecer. E esse outro raramente responde: "Ao inferno com o padrão!" Quase sempre tenta provar que sua atitude não infringiu este padrão, ou que, se infringiu, ele tinha uma desculpa muito especial para agir assim. Alega uma razão especial, em seu caso particular, para não ceder o lugar à pessoa que ocupou o banco primeiro, ou alega que a situação era muito diferente quando ele ganhou aquele gomo de laranja, ou, ainda, que um fato novo o desobriga de cumprir o prometido. Está claro que os envolvidos na discussão conhecem uma lei ou regra de conduta leal, de comportamento digno ou moral, ou como quer que o queiramos chamar, com a qual efetivamente concordam. E eles conhecem essa lei. Se não conhecessem, talvez lutassem como animais ferozes, mas não poderiam "discutir" no sentido humano desta palavra. A intenção da discussão é mostrar que o outro está errado. Não haveria sentido em demonstrá-lo se você e ele não tivessem algum tipo de consenso sobre o que é certo e o que é errado, da mesma forma que não haveria sentido em marcar a falta de um jogador de futebol sem que houvesse uma concordância prévia sobre as regras do jogo. Ora, essa lei ou regra do certo e do errado era chamada de Lei Natural. Hoje em dia, quando falamos das "leis naturais", quase sempre nos referimos a coisas como a gravitação, a hereditariedade ou as leis da química. Porém, quando os pensadores do passado chamavam a lei do certo e do errado de "Lei Natural", estava implícito que se tratava da Lei da Natureza Humana. A ideia era a seguinte: assim como os corpos são regidos pela lei da gravitação, e os organismos, pelas leis da biologia, assim também a criatura chamada "homem" possui uma lei própria - com a grande diferença de que os corpos não são livres para escolher se vão obedecer à lei da gravitação ou não, ao passo que o homem pode escolher entre obedecer ou desobedecer à Lei da Natureza Humana.

Examinemos a questão sob outro prisma. Todo homem está continuamente sujeito a diversos conjuntos de leis, mas a apenas um ele é livre para desobedecer. Enquanto corpo, ele é regido pela gravitação e não pode desobedecê-la; se ficar suspenso no ar, sem apoio, fatalmente cairá como cairia uma pedra. Enquanto organismo, está sujeito a diversas leis biológicas, às quais, como os animais, não pode desobedecer. Em outras palavras, o homem não pode desobedecer às leis que tem em comum com os outros seres; mas a lei própria da natureza humana, a lei que não é compartilhada nem pelos animais, nem pelos vegetais, nem pelos seres inorgânicos, a esta lei o ser humano pode desobedecer, se assim quiser. Essa lei era chamada de Lei Natural porque as pessoas pensavam que todos a conheciam naturalmente e não precisavam que outros a ensinassem. Isso, evidentemente, não significava que não se pudesse encontrar, aqui e ali, um indivíduo que a ignorasse, assim como existem indivíduos daltônicos ou desafinados. Considerando a raça humana em geral, no entanto, as pessoas pensavam que a ideia humana de comportamento digno ou decente era óbvia para todos. E acredito que essas pessoas tinham razão. Se assim não fosse, as coisas que dizemos a respeito da guerra não teriam sentido nenhum. Se o Certo não for uma entidade real, que os nazistas, lá no fundo, conhecem tão bem quanto nós e têm o dever de praticar, qual o sentido de dizer que o inimigo está errado? Se eles não têm nenhuma noção daquilo que chamamos de Certo, talvez tivéssemos de combatê-los do mesmo jeito, mas não poderíamos culpá-los pelas suas ações, da mesma forma que não podemos culpar um homem por ter nascido com os cabelos louros ou castanhos.

Sei que certas pessoas afirmam que a ideia de uma Lei Natural ou lei de dignidade de comportamento, conhecida de todos os homens, não tem fundamento, porque as diversas civilizações e os povos das diversas épocas tiveram doutrinas morais muito diferentes.

Mas isso não é verdade. E certo que existem diferenças entre as doutrinas morais dos diversos povos, mas elas nunca chegaram a constituir algo que se assemelhasse a uma diferença total. Se alguém se der ao trabalho de comparar os ensinamentos morais dos antigos egípcios, dos babilónios, dos hindus, dos chineses, dos gregos e dos romanos, ficará surpreso, isto sim, com o imenso grau de semelhança que eles têm entre si e também com nossos próprios ensinamentos morais. Reuni alguns desses dados concordantes no apêndice que escrevi para um outro livro, chamado The Abolition of Man [A abolição do homem]. Porém, para os fins que agora temos em vista, basta perguntar ao leitor como seria uma moralidade totalmente diferente da que conhecemos. Imagine um país que admirasse aquele que foge do campo de batalha, ou em que um homem se orgulhasse de trair as pessoas que mais lhe fizeram bem. O leitor poderia igualmente imaginar um país em que dois e dois são cinco. Os povos discordaram a respeito de quem são as pessoas com quem você deve ser altruísta - sua família, seus compatriotas ou todo o género humano; mas sempre concordaram em que você não deve colocar a si mesmo em primeiro lugar. O egoísmo nunca foi admirado. Os homens divergiram quanto ao número de esposas que podiam ter, se uma ou quatro; mas sempre concordaram em que você não pode simplesmente ter qualquer mulher que lhe apetecer.

O mais extraordinário, porém, é que, sempre que encontramos um homem a afirmar que não acredita na existência do certo e do errado, vemos logo em seguida este mesmo homem mudar de opinião. Ele pode não cumprir a palavra que lhe deu, mas, se você fizer a mesma coisa, ele lhe dirá "Não é justo!" antes que você possa dizer "Cristóvão Colombo". Um país pode dizer que os tratados de nada valem; porém, no momento seguinte, porá sua causa a perder afirmando que o tratado específico que pretende romper não é um tratado justo. Se os tratados de nada valem, se não existe um certo e um errado — em outras palavras, se não existe uma Lei Natural -, qual a diferença entre um tratado justo e um injusto? Será que, agindo assim, eles não deixam o rabo à mostra e demonstram que, digam o que disserem, conhecem a Lei Natural tanto quanto qualquer outra pessoa? Parece, portanto, que só nos resta aceitar a existência de um certo e um errado. As pessoas podem volta e meia se enganar a respeito deles, da mesma forma que às vezes erram numa soma; mas a existência de ambos não depende de gostos pessoais ou de opiniões, da mesma forma que um cálculo errado não invalida a tabuada. Se concordamos com estas premissas, posso passar à seguinte: nenhum de nós realmente segue à risca a Lei Natural. Se existir uma exceção entre os leitores, me desculpo. Será mais proveitoso que essa pessoa leia outro livro, pois nada do que vou falar lhe diz respeito. Feita a ressalva, volto aos leitores comuns.

Espero que vocês não se irritem com o que vou dizer. Não estou fazendo uma pregação, e Deus sabe que não pretendo ser melhor do que ninguém. Só estou tentando chamar a atenção para um fato: o de que, neste ano, neste mês ou, com maior probabilidade, hoje mesmo, todos nós deixamos de praticar a conduta que gostaríamos que os outros tivessem em relação a nós. Podemos apresentar mil e uma desculpas por termos agido assim. Você se impacientou com as crianças porque estava cansado; não foi muito correto naquela questão de dinheiro - questão que já quase fugiu da memória -porque estava com problemas financeiros; e aquilo que prometeu para fulano ou sicrano, ah!, nunca teria prometido se soubesse como estaria ocupado nos últimos dias. Quanto a seu modo de tratar a esposa (ou o marido), a irmã (ou o irmão) — se eu soubesse o quanto eles são irritantes, não me surpreenderia; e, afinal de contas, quem sou eu para me intrometer? Não sou diferente. Ou seja, nem sempre consigo cumprir a Lei Natural, e, quando alguém me adverte de que a descumpri, me vem à cabeça um rosário de desculpas que dá várias voltas ao redor do pescoço. A pergunta que devemos fazer não é se essas desculpas são boas ou más. O que importa é que elas dão prova da nossa profunda crença na Lei Natural, quer tenhamos consciência de acreditar nela, quer não. Se não acreditássemos na boa conduta, por que a ânsia de encontrar justificativas para qualquer deslize? A verdade é que acreditamos a tal ponto na decência e na dignidade, e sentimos com tanta força a pressão da Soberania da Lei, que não temos coragem de encarar o fato de que a transgredimos. Logo, tentamos transferir para os outros a responsabilidade pela transgressão. Perceba que é só para o mau comportamento que nos damos ao trabalho de encontrar tantas explicações. São somente as fraquezas que procuramos justificar pelo cansaço, pela preocupação ou pela fome. Nossas boas qualidades, atribuímo-las a nós mesmos.

São essas, pois, as duas ideias centrais que pretendia expor. Primeiro, a de que os seres humanos, em todas as regiões da Terra, possuem a singular noção de que devem comportar-se de uma certa maneira, e, por mais que tentem, não conseguem se livrar dessa noção. Segundo, que na prática não se comportam dessa maneira. Os homens conhecem a Lei Natural e transgridem-na. Esses dois fatos são o fundamento de todo pensamento claro a respeito de nós mesmos e do universo em que vivemos.

2. ALGUMAS OBJEÇÕES
Se essas duas ideias são nosso fundamento, é melhor que eu deixe esse fundamento bem firme antes de seguir em frente. Algumas das cartas que recebi mostram que um grande número de pessoas tem dificuldade para compreender o que significa essa Lei da Natureza Humana, ou Lei Moral, ou Regra de Bom Comportamento.

Certas pessoas, por exemplo, me escreveram perguntando: "Isso que você chama de Lei Moral não é simplesmente o nosso instinto gregário? Será que ele não se desenvolveu como todos os nossos outros instintos?" Não vou negar que possuímos esse instinto, mas não é a ele que me refiro quando falo em Lei Moral. Todos nós sabemos o que é ser movido pelo instinto — pelo amor materno, o instinto sexual ou o instinto da alimentação: sentimos o forte desejo ou impulso de agir de determinada maneira. E é claro que, às vezes, sentimos o desejo intenso de ajudar outra pessoa. Isso se deve, sem dúvida, ao instinto gregário. No entanto, sentir o desejo intenso de ajudar é bem diferente de sentir a obrigação imperiosa de ajudar, quer o queiramos, quer não. Suponhamos que você ouça o grito de socorro de um homem em perigo. Provavelmente sentirá dois desejos: o de prestar socorro (que se deve ao instinto gregário) e o de fugir do perigo (que se deve ao instinto de auto-preservação). Mas você encontrará dentro de si, além desses dois impulsos, um terceiro elemento, que lhe mandará seguir o impulso da ajuda e suprimir o impulso da fuga. Esse elemento, que põe na balança os dois instintos e decide qual deles deve ser seguido, não pode ser nenhum dos dois. Você poderia pensar também que a partitura musical, que lhe manda, num determinado momento, tocar tal nota no piano e não outra, é equivalente a uma das notas no teclado. A Lei Moral nos informa da melodia a ser tocada; nossos instintos são meras teclas.

Há outra maneira de perceber que a Lei Moral não é simplesmente um de nossos instintos. Se existe um conflito entre dois instintos e, na mente dessa criatura, não há mais nada além desses instintos, é óbvio que o instinto mais forte tem de prevalecer. Porém, nos momentos em que enxergamos a Lei Moral com maior clareza, ela geralmente nos aconselha a escolher o impulso mais fraco. Provavelmente, seu desejo de ficar a salvo é maior do que o desejo de ajudar o homem que se afoga, mas a Lei Moral lhe manda ajudá-lo, apesar dos pesares. E, em geral, ela nos manda tomar o impulso correto e tentar torná-lo mais forte do que originalmente era - não é mesmo? Ou seja, sentimos que temos o dever de estimular nosso instinto gregário, por exemplo, despertando a imaginação e estimulando a piedade, entre outras coisas, para termos força para agir corretamente na hora certa. E evidente, porém, que, no momento em que decidimos tornar mais forte um instinto, nossa ação não é instintiva. Aquilo que lhe diz: "Seu instinto está adormecido, desperte-o!", não pode ser o próprio instinto. O que lhe manda tocar tal nota no piano não pode ser a própria nota.

Há ainda uma terceira maneira de ver a Lei Moral. Se ela fosse um de nossos instintos, seríamos capazes de identificar dentro de nós um impulso que sempre pudéssemos chamar de "bom" segundo a regra da boa conduta. Mas isso não acontece. Não existe nenhum impulso que às vezes a Lei Moral não nos aconselhe a inibir, nem outro que ela não nos encoraje a praticar de vez em quando. E um erro achar que alguns de nossos impulsos, como o amor materno e o patriotismo, são bons, e outros, como o instinto sexual e a agressividade, são maus. Tudo o que queremos dizer é que existem mais situações em que o instinto de luta e o desejo sexual devem ser contidos do que situações em que devemos conter o amor materno e o patriotismo. No entanto, em certas ocasiões, é dever do homem casado encorajar seu impulso sexual, e do soldado fomentar sua agressividade. Existem também oportunidades em que a mãe deve refrear o amor pelo filho, ou um homem deve conter o amor por seu país, para que não cometam injustiça contra outras crianças ou outros países. A rigor, não existem impulsos bons e impulsos maus. Voltemos ao piano. Não há nele dois tipos de notas, as "certas" e as "erradas". Cada uma das notas é certa para uma determinada ocasião e errada para outra. A Lei Moral não é um instinto particular ou um conjunto de instintos; é como um maestro que, regendo os instintos, define a melodia que chamamos de bondade ou boa conduta.

Este tema, aliás, tem grandes consequências práticas. A coisa mais perigosa que podemos fazer é tomar um certo impulso de nossa natureza como critério a ser seguido custe o que custar. Não existe um único impulso que, erigido em padrão absoluto, não tenha o poder de nos transformar em demónios. Talvez você pense que o amor pela humanidade em geral é livre de perigos, mas isso não é verdade. Se deixarmos de lado o senso de justiça, logo estaremos violando acordos e falsificando provas judiciais em prol do "bem da humanidade". Teremos então nos tornado homens cruéis e desleais.

Outras pessoas me escreveram perguntando: "Isso que você chama de Lei Moral não é somente uma convenção social, algo que nos foi incutido pela nossa educação?" Acredito que essas pessoas incorrem num malentendido. Elas tomam por pressuposto que, se aprendemos alguma regra de nossos pais e professores, essa regra é uma simples invenção humana. Mas é evidente que isso não é verdade. Todos aprendemos a tabuada na escola. 12 Uma criança que crescesse sozinha numa ilha deserta não a aprenderia. Mas salta à vista que a tabuada não é apenas uma convenção humana, algo que os seres humanos fizeram para si e que poderiam ter feito diferente se assim quisessem. Concordo plenamente que aprendemos a Regra de Boa Conduta dos pais e professores, dos amigos e dos livros, assim como aprendemos todas as outras coisas. Porém, certas coisas que aprendemos são meras convenções que poderiam ser diferentes - aprendemos a manter-nos à direita na estrada, mas a regra poderia ser manter-se à esquerda -, e outras coisas, como a matemática, são verdades. A pergunta a ser feita é a qual das duas classes pertence a Lei da Natureza Humana.

Há duas razões para afirmar que ela pertence à mesma classe que a da matemática. A primeira, expressa no primeiro capítulo, é que, apesar de haver diferenças entre as ideias morais de certa época ou país e as de outros tempos ou lugares, essas diferenças, na realidade, não são muito grandes - nem de longe são tão importantes quanto a maioria das pessoas imagina -, e, assim, podemos reconhecer a mesma lei dentro de todas elas; ao passo que as meras convenções, como o sentido do trânsito ou os tipos de vestimenta, diferem largamente. A segunda razão é a seguinte: quando você considera as diferenças morais entre um povo e outro, não pensa que a moral de um dos dois é sempre melhor ou pior que a do outro? Será que as mudanças que se constatam entre elas não foram mudanças para melhor? Caso a resposta seja negativa, então está claro que nunca houve um progresso moral. O progresso não significa apenas uma mudança, mas uma mudança para melhor. Se um conjunto de ideias morais não fosse melhor do que outro, não haveria sentido em preferir a moral civilizada à moral bárbara, ou a moral cristã à moral nazista. E ponto pacífico que a moralidade de alguns povos é melhor que a de outros. Acreditamos também que certas pessoas que tentaram mudar os conceitos morais de sua época foram o que chamaríamos de Reformadores ou Pioneiros - pessoas que entenderam melhor a moral do que seus contemporâneos. Pois muito bem. No momento em que você diz que um conjunto de ideias morais é superior a outro, está, na verdade, medindo-os ambos segundo um padrão e afirmando que um deles é mais conforme a esse padrão que o outro. O padrão que os mede, no entanto, difere de ambos. Você está, na realidade, comparando as duas coisas com uma Moral Verdadeira e admitindo que existe algo que se pode chamar de O Certo, independentemente do que as pessoas pensam; e está admitindo que as ideias de alguns povos se aproximaram mais desse Certo que as ideias de outros povos. Ou, em outras palavras: se as suas noções morais são mais verdadeiras que as dos nazistas, deve existir algo - uma Moral Verdadeira — que seja o objeto a que essa verdade se refere. A razão pela qual sua concepção de Nova York pode ser mais verdadeira ou mais falsa que a minha é que Nova York é um lugar real, cuja existência independe do que eu ou você pensamos a seu respeito. Se, quando mencionássemos Nova York, tudo o que pensássemos fosse "a cidade que existe na minha cabeça", como é que um de nós poderia estar mais próximo da verdade do que o outro? Não haveria medida de verdade ou de falsidade. Do mesmo modo, se a Regra da Boa Conduta significasse simplesmente "tudo que cada povo aprova", não haveria sentido em dizer que uma nação está mais correta do que a outra, nem que o mundo se torna moralmente melhor ou pior.

Concluo, portanto, que, apesar de as diferenças de ideias a respeito da Boa Conduta nos levarem a suspeitar de que não existe uma verdadeira Lei de Conduta natural, as coisas que estamos naturalmente propensos a pensar provam justamente o contrário. Algumas palavras antes de terminar: conheci pessoas que exageraram essas diferenças, por terem confundido as diferenças morais com as meras diferenças de crença a respeito dos fatos. Por exemplo, um horíiem me perguntou certa vez: 'Trezentos anos atrás, as bruxas na Inglaterra eram queimadas na fogueira. E isso que você chama de Regra da Natureza Humana ou de Boa Conduta?" Mas é claro que a razão pela qual não se executam mais bruxas hoje em dia é que não acreditamos que elas existam. Se acreditássemos - se realmente pensássemos que existem pessoas entre nós que venderam a alma para o diabo, receberam em troca poderes sobrenaturais e usaram esses poderes para matar ou enlouquecer os vizinhos, ou para provocar calamidades naturais —, certamente concordaríamos que, se alguém merecesse a pena de morte, seriam essas sórdidas traidoras. Não há aqui uma diferença de princípios morais, apenas de enfoque dos fatos. Pode ser que o fato de não acreditarmos em bruxas seja um grande avanço do conhecimento, mas não existe avanço moral algum em deixar de executá-las quando pensamos que elas não existem. Não consideraríamos misericordioso um homem que não armasse ratoeiras por não acreditar que houvesse ratos na casa.

3. A REALIDADE DA LEI
Volto agora ao que disse no final do primeiro capítulo: que a raça humana tem duas características curiosas. Em primeiro lugar, que os homens são assombrados pela ideia de um padrão de comportamento que se sentem obrigados a pôr em prática, o qual se poderia chamar de conduta leal, decência, moralidade ou Lei Natural. Em segundo lugar, que eles não o põem em prática. Alguns de vocês podem se perguntar por que razão chamei de "curioso" isso que pode lhes parecer a coisa mais natural do mundo. Em especial, talvez vocês me tenham achado muito duro com a humanidade; afinal de contas, aquilo que chamei de transgressão da Lei do Certo e do Errado, ou da Lei Natural, significa somente que ninguém é perfeito. E por que, ó céus, esperaria eu o contrário? Essa seria uma boa resposta se tudo o que eu pretendesse fosse medir numa balança a culpa exata que cabe a cada um de nós por não nos termos portado como queremos que os outros se portem. Não é essa, porém, a tarefa que me propus. Nesta investigação, não estou preocupado com a culpa; estou tentando descobrir a Verdade. Desse ponto de vista, a própria ideia de imperfeição, de algo que não é o que deveria ser, tem suas consequências.

Se considerarmos um ente como uma pedra ou uma árvore, ele é o que é e não há sentido em dizer que deveria ser de outro jeito. E claro que podemos dizer que a pedra tem "a forma errada" se pretendemos usá-la para uma construção, ou que uma árvore não é boa porque não faz sombra suficiente. Porém, isso significa tãoso-mente que a pedra ou a árvore não se prestam ao uso que queremos fazer delas; não as culpamos de terem tais ou quais características, a não ser como piada. Temos consciência de que, dado um determinado clima e tipo de solo, a árvore não poderia ser em nada diferente do que é. A árvore que, de nosso ponto de vista, chamamos de "má" obedece às leis de sua natureza tanto quanto a que chamamos de "boa".

Vocês vêem aonde quero chegar? E que o que nós costumamos chamar de leis naturais — o modo pelo qual o clima age sobre a planta, por exemplo — não são leis no sentido estrito da palavra. Essa é só uma maneira de dizer. Quando afirmamos que uma pedra obedece à lei da gravidade, isso não é, por acaso, o mesmo que dizer que essa lei significa apenas "o que a pedra sempre faz"? Não pensamos realmente que a pedra, quando é solta, subitamente se lembra de que tem o dever de cair. Tudo o que queremos dizer é que ela, de fato, cai. Em outras palavras, não podemos ter certeza de que exista algo superior aos fatos mesmos, uma lei que determine o que deve acontecer e que seja diferente do que efetivamen-te acontece. As leis da natureza, quando aplicadas às árvores ou pedras, podem significar apenas "o que a Natureza efetivamente faz". Mas, se nos voltarmos para a Lei da Natureza Humana, ou Lei da Boa Conduta, a história é outra. E ponto pacífico que ela não significa "o que os seres humanos efetivamente fazem", já que, como eu disse antes, muitos deles não obedecem em absoluto a essa lei, e nenhum deles a observa integralmente. A lei da gravidade nos diz o que a pedra faz quando cai; já a Lei da Natureza Humana nos diz o que os seres humanos deveriam fazer e não fazem. Ou seja, quando tratamos de seres humanos, existe algo além e acima dos fatos. Existem os fatos (como os homens se comportam) e também uma outra coisa (como deveriam se comportar). No resto do universo, não há necessidade de outra coisa que não os fatos. Elétrons e moléculas comportam-se de determinada maneira e disso decorrem certos resultados, e talvez o assunto pare aí 11. Os homens, no entanto, comportam-se de determinada maneira e o assunto não pára aí, já que estamos sempre conscientes de que o comportamento deles deveria ser diferente.

Isso é tão singular que ficamos tentados a nos enganar com falsas explicações. Podemos, por exemplo, afirmar que, quando você diz que um homem não deveria fazer o que fez, quer dizer a mesma coisa quando assevera que a pedra tem a forma errada: ou seja, que a atitude dele é inconveniente para você. Mas isso é simplesmente falso. Um homem que chega primeiro no trem e ocupa um bom assento é tão inconveniente quanto um homem que tira minha mala do assento e o ocupa sorrateiramente enquanto estou de costas. Porém, não culpo o primeiro homem, mas culpo o segundo. Não fico bravo - exceto talvez por um breve momento, até recuperar a razão - com uma pessoa que por acidente me faz tropeçar, mas ficot bravo com alguém que tenta me fazer tropeçar de propósito, mesmo que não consiga. Porém, foi a primeira pessoa que efetivamente me machucou, e não a segunda. Às vezes, o comportamento que julgo mau não é inconveniente para mim de modo algum, muito pelo contrário. Na guerra, cada um dos lados beligerantes achará muito útil um traidor do lado oposto; porém, apesar de usá-lo e de recompensá-lo pelos serviços prestados, o considerará um verme em forma humana. Assim, não podemos dizer que o que chamamos de boa conduta alheia é simplesmente a conduta que nos é útil. E, quanto à nossa boa conduta, parece-me óbvio que não se trata da que nos traz vantagens. Trata-se, isto sim, de ficar contente com 30 xelins quando poderíamos ter ganho três libras; de fazer o dever de casa honestamente quando poderíamos copiar o do vizinho; de respeitar uma moça quando gostaríamos de ir para a cama com ela; de não nos afastar de um posto perigoso quando poderíamos escapar para um lugar mais seguro; de manter a palavra quando preferiríamos faltar com ela; de falar a verdade mesmo que assim pareçamos idiotas perante os outros.

Certas pessoas dizem que, apesar de a boa conduta não ser o que traz vantagens para cada pessoa individualmente, pode significar o que traz vantagens para a humanidade como um todo; e, portanto, a coisa não seria tão misteriosa. Os seres humanos, no fim das contas, possuem algum bom senso; percebem que a segurança e a felicidade só são possíveis numa sociedade em que cada qual age com lealdade, e é por perceber isso que tentam conduzir-se com decência. Ora, é perfeitamente verdadeira a ideia de que a segurança e a felicidade só podem vir quando os indivíduos, as classes sociais e os países são honestos, justos e bons uns com os outros. E uma das verdades mais importantes do mundo. Ela só não consegue explicar por que temos tais e tais sentimentos diante do Certo e do Errado. Se eu perguntar: "Por que devo ser altruísta?", e você responder: "Porque isso é bom para a sociedade", poderei retrucar: "Por que devo me importar com o que é bom para a sociedade se isso não me traz vantagens pessoais?", ao que você terá de responder: "Porque você deve ser altruísta" - o que nos leva de volta ao ponto de partida. O que você diz é verdade, mas não nos faz avançar. Se um homem pergunta o motivo de se jogar futebol, de nada adianta responder que é "fazer gois", pois tentar fazer gois é o próprio jogo, e não o motivo pelo qual o jogamos. No final, estamos dizendo somente que "futebol é futebol" - o que é verdade, mas não precisa ser dito. Da mesma forma, se uma pessoa pergunta o motivo de se agir com decência, não vale a pena responder "para o bem da sociedade", pois tentar beneficiar a sociedade, ou, em outras palavras, ser altruísta (pois "sociedade", no fim das contas, significa apenas "as outras pessoas"), é um dos elementos da decência. Tudo o que se estará dizendo é que uma conduta decente é uma conduta decente. Teríamos dito a mesma coisa se tivéssemos parado na declaração de que "As pessoas devem ser altruístas". E é nesse ponto que eu paro. Os homens devem ser altruístas, devem ser justos. Não que os homens sejam altruístas ou gostem de sê-lo, mas que devem sê-lo. A Lei Moral, ou Lei da Natureza Humana, não é simplesmente um fato a respeito do comportamento humano, como a Lei da Gravidade é ou pode ser simplesmente um fato a respeito do comportamento dos ob-jetos pesados. Por outro lado, não é mera fantasia, pois não conseguimos nos desvencilhar dessa ideia; se conseguíssemos, a maior parte das coisas que dizemos sobre os homens seria absurda. Ela também não é uma simples declaração de como gostaríamos que os homens se comportassem para a nossa conveniência, pois o comportamento que taxamos de mau ou injusto nem sempre é inconveniente, e, muitas vezes, é exatamente o contrário. Consequentemente, essa Regra do Certo e do Errado, ou Lei da Natureza Humana, ou como quer que você queira chamá-la, deve ser uma Verdade - uma coisa que existe realmente, e não uma invenção humana. E, no entanto, não é um fato no mesmo sentido em que o comportamento efetivo das pessoas é um fato. Começa a ficar claro que teremos de admitir a existência de mais de um plano de realidade; e que, neste caso em particular, existe algo que está além e acima dos fatos comuns do comportamento humano, algo que no entanto é perfeitamente real - uma lei verdadeira, que nenhum de nós elaborou, mas que nos sentimos obrigados a cumprir.

4. O QUE EXISTE POR TRÁS DA LEI
Vamos fazer um resumo de tudo o que vimos até aqui. No caso das pedras, das árvores e de coisas dessa natureza, o que chamamos de Lei Natural pode não ser nada além de uma força de expressão. Quando você diz que a natureza é governada por certas leis, quer dizer apenas que a natureza, de fato, se comporta de certa forma. As chamadas "leis" talvez não tenham realidade própria, talvez não estejam além e acima dos fatos que podemos observar. No caso do homem, porém, percebemos que as coisas não são bem assim. A Lei da Natureza Humana, ou Lei do Certo e do Errado, é algo que transcende os fatos do comportamento humano. Neste caso, além dos fatos em si, existe outra coisa - uma verdadeira lei que não inventamos e à qual sabemos que devemos obedecer.

Quero considerar agora o que isso nos diz sobre o universo em que vivemos. Desde que o homem se tornou capaz de pensar, ele se pergunta no que consiste o universo e como ele veio a existir. Grosso modo, dois pontos de vista foram sustentados. O primeiro deles é o que chamamos de materialista. Quem o adota afirma que a matéria e o espaço simplesmente existem e sempre existiram, ninguém sabe por quê. A matéria, que se comporta de formas fixas, veio, por algum acidente, a produzir criaturas como nós, criaturas capazes de pensar. Numa chance em mil, um corpo se chocou contra o sol e gerou os planetas. Por outra chance infinitesimal, as substâncias químicas necessárias à vida e a temperatura correta se fizeram presentes num desses planetas, e, assim, uma parte da matéria desse planeta ganhou vida. Depois, por uma longuíssima série de coincidências, as criaturas viventes se desenvolveram até se tornarem seres como nós. O outro ponto de vista é o religioso. Segundo ele, o que existe por trás do universo se assemelha mais a uma mente que a qualquer outra coisa conhecida. Ou seja, é algo consciente e dotado de objetivos e preferências. De acordo com essa visão, esse ser criou o universo. Alguns dos seus desígnios são ocultos, enquanto outros são bastante claros: produzir criaturas semelhantes a si mesmo — quero dizer, semelhantes na medida em possuem mentes. Por favor, não pensem que um destes pontos de vista era sustentado há muito tempo e aos poucos foi cedendo lugar ao outro. Onde quer que tenha havido homens pensantes, os dois pontos de vista sempre apareceram de uma forma ou de outra. Notem também que, para saber qual deles é o correto, não podemos apelar à ciência no sentido comum dessa palavra. A ciência funciona a partir da experiência e observa como as coisas se comportam. Todo enunciado científico, por mais complicado que pareça à primeira vista, na verdade significa algo como "apontei o telescópio para tal parte do céu às 2h20min do dia 15 de janeiro e vi tal e tal fenómeno", ou "coloquei um pouco deste material num recipiente, aqueci-o a uma temperatura X e tal coisa aconteceu". Não pensem que eu esteja desmerecendo a ciência; estou apenas mostrando para que ela serve. Quanto mais sério for o homem de ciência, mais (no meu entender) ele concordará comigo quanto ao papel dela - papel, aliás, extremamente útil e necessário. Agora, perguntas como "Por que algo veio a existir?" e "Será que existe algo - algo de outra espécie — por trás das coisas que a ciência observa?" não são perguntas científicas. Se existe "algo por trás", ou ele há de manter-se totalmente desconhecido para o homem ou far-se-á revelar por outros meios. A ciência não pode dizer nem que tsst ser existe nem que não existe, e os verdadeiros cientistas geralmente não fazem essas declarações. São quase sempre jornalistas e romancistas de sucesso que as produzem a partir de informações coletadas em manuais de ciência popular e assimiladas de maneira imperfeita. Afinal de contas, tudo não passa de uma questão de bom senso. Suponha que a ciência algum dia se tornasse completa, tendo o conhecimento total de cada mínimo detalhe do universo. Não é óbvio que perguntas como "Por que existe um universo?", "Por que ele continua existindo?" e "Qual o significado de sua existência?" continuariam intactas?

Deveríamos perder as esperanças, não fosse por um detalhe. No universo inteiro, existe uma coisa, e somente uma, que nós conhecemos melhor do que conheceríamos se contássemos somente com a observação externa. Essa coisa é o Ser Humano. Nós não nos limitamos a observar o ser humano, nós somos seres humanos. Nesse caso, podemos dizer que as informações que possuímos vêm "de dentro". Estamos a par do assunto. Por causa disto, sabemos que os seres humanos estão sujeitos a uma lei moral que não foi criada por eles, que não conseguem tirar do seu horizonte mesmo quando tentam e à qual sabem que devem obedecer. Alguém que estudasse o homem "de fora", da maneira como estudamos a eletricidade ou os repolhos, sem conhecer a nossa língua e, portanto, impossibilitado de obter conhecimento do nosso interior, não teria a mais vaga ideia da existência desta lei moral a partir da observação de nossos atos. Como poderia ter? Suas observações se resumiriam ao que fazemos, ao passo que essa lei diz respeito ao que deveríamos fazer. Do mesmo modo, se existe algo acima ou por trás dos fatos observados sobre as pedras ou sobre o clima, nós, estudando-os de fora, não temos a menor esperança de descobrir o que ele é.

A natureza da questão é a seguinte: queremos saber se o universo simplesmente é o que é, sem nenhuma razão especial, ou se existe por trás dele um poder que o produziu tal como o conhecemos. Uma vez que esse poder, se ele existe, não seria um dos fatos observados, mas a realidade que os produziu, a mera observação dos fenómenos não pode encontrá-lo. Existe apenas um caso no qual podemos saber se esse "algo mais" existe; a saber, o nosso caso. E, nesse caso, constatamos que existe. Ou examinemos a questão de outro ângulo. Se existisse um poder exterior que controlasse o universo, ele não poderia se revelar para nós como um dos fatos do próprio universo - da mesma forma que o arquiteto de uma casa não pode ser uma de suas escadas, paredes ou lareira. A única maneira pela qual podemos esperar que esta força se manifeste é dentro de nós mesmos, como uma influência ou voz de comando que tente nos levar a ado-tar uma determinada conduta. E justamente isso que descobrimos dentro de nós. Já não deveríamos ficar com a pulga atrás da orelha? No único caso em que podemos encontrar uma resposta, ela é positiva; nos outros, em que não há respostas, entendemos por que não podemos encontrá-las. Suponha que alguém me perguntasse, acerca de um homem de uniforme azul que passa de casa em casa depositando envelopes de papel em cada uma delas, por que, afinal, eu concluo que dentro dos envelopes existem cartas. Eu responderia: "Porque sempre que ele deixa envelopes parecidos na minha casa, dentro deles há uma carta para mim." Se o interlocutor objetasse: "Mas você nunca viu as cartas que supõe que as outras pessoas recebam", eu diria: "E claro que não, e nem quero vê-las, porque não foram endereçadas a mim. Eu imagino o conteúdo dos envelopes que não posso abrir pelo dos envelopes que posso." O mesmo se dá aqui. O único envelope que posso abrir é o Ser Humano. Quando o faço, e especialmente quando abro o Ser Humano chamado "Eu", descubro que não existo por mim mesmo, mas que vivo sob uma lei, que algo ou alguém quer que eu me comporte de determinada forma. E claro que não acho que, se pudesse entrar na existência de uma pedra ou de uma árvore, encontraria exatamente a mesma coisa, assim como não acho que as pessoas da minha rua recebam exatamente as mesmas cartas que eu. Devo concluir que a pedra, por exemplo, tem de obedecer à lei da gravidade - que, enquanto o missivista se limita a aconselhar-me a obedecer à lei da minha natureza, ele obriga a pedra a obedecer às leis de sua natureza pétrea. O que não consigo negar é que, em ambos os casos, existe, por assim dizer, esse missivista, um Poder por trás dos fatos, um Diretor, um Guia.

Não pense que estou indo mais rápido do que estou na realidade. Ainda não estou nem perto do Deus da teologia cristã. Tudo o que obtive até aqui é a evidência de Algo que dirige o universo e que se manifesta em mim como uma lei que me incita a praticar o certo e me faz sentir incomodado e responsável pelos meus erros. Segundo me parece, temos de supor que esse Algo é mais parecido com uma mente do que com qualquer outra coisa conhecida — porque, afinal de contas, a única outra coisa que conhecemos é a matéria, e ninguém jamais viu um pedaço de matéria dar instruções a alguém. E claro, porém, que não precisa ser muito parecido com uma mente, muito menos com uma pessoa. No próximo capítulo, vamos tentar descobrir mais a seu respeito. Apenas uma advertência. Houve muita conversa fajuta a respeito de Deus nos últimos cem anos, e não é isso que tenho a oferecer. Esqueça tudo o que ouviu.

NOTA: Para manter esta seção curta o suficiente para ir ao ar, só mencionei os pontos de vista materialista e religioso. Para completar o quadro, tenho de mencionar o ponto de vista intermediário entre os dois, a chamada filosofia da Força Vital, ou Evolução Criativa, ou Evolução Emergente, cuja exposição mais brilhante e arguta encontra-se nas obras de Bernard Shaw, ao passo que a mais profunda, nas de Bergson. Seus defensores dizem que as pequenas variações pelas quais a vida neste planeta "evoluiu" das formas mais simples à forma humana não ocorreram em virtude do acaso, mas sim pelo "esforço" e pela "intenção" de uma Força Vital. Quando fazem tais afirmações, devemos perguntar se, por Força Vital, essas pessoas entendem algo semelhante a uma mente ou não. Se for semelhante, "uma mente que traz a vida à existência e a conduz à perfeição" não é outra coisa senão Deus, e seu ponto de vista é idêntico ao religioso. Se não for semelhante, qual o sentido, então, de dizer que algo sem mente faça um "esforço" e tenha uma "intenção"? Este argumento me parece fatal para esse ponto de vista. Uma das razões pelas quais as pessoas julgam a Evolução Criativa tão atraente é que ela dá o consolo emocional da crença em Deus sem impor as consequências desagradáveis desta. Quando nos sentimos ótimos e o sol brilha lá fora, e não queremos acreditar que o universo inteiro se reduz a uma dança mecânica de átomos, é reconfortante pensar nessa gigantesca e misteriosa Força evoluindo pelos séculos e nos carregando em sua crista. Se, por outro lado, queremos fazer algo escuso, a Força Vital, que não passa de uma força cega, sem moral e sem discernimento, nunca vai nos atrapalhar como fazia o aborrecido Deus que nos foi ensinado quando éramos crianças. A Força Vital é como um deus domesticado. Você pode tirá-lo de dentro da caixa sempre que quiser, mas ele não vai incomodá-lo em ocasião alguma — todas as coisas boas da religião sem custo nenhum. Não será a Força Vital a maior invenção da fantasia humana que o mundo jamais viu?

5. TEMOS MOTIVOS PARA NOS SENTIR INQUIETOS
Encerrei o último capítulo com a noção de que, na Lei Moral, entramos em contato com algo, ou alguém, acima do universo material. Acho que alguns leitores sentiram um certo desconforto quando cheguei a esse ponto, e pensaram, inclusive, que eu lhes preguei uma peça, embalando cuidadosamente no papel de embrulho da filosofia algo que não passa de mais uma "conversa fiada sobre religião". Talvez você estivesse disposto a me ouvir se eu tivesse novidades para contar; se, porém, tudo se resume à religião, bem, o mundo já experimentou esse caminho e não podemos voltar no tempo. Tenho três coisas a dizer para quem estiver se sentindo assim.

A primeira delas é a respeito de "voltar no tempo". Você pensaria que estou brincando se dissesse que podemos atrasar o relógio e que, se o relógio está errado, é essa a coisa sensata a fazer? Prefiro, entretanto, deixar de lado essa comparação com relógios. Todos nós queremos o progresso. Progredir, porém, é aproximarmo-nos do lugar aonde queremos chegar. Se você tomou o caminho errado, não vai chegar mais perto do objetivo se seguir em frente. Para quem está na estrada errada, progredir é dar meia-volta e retornar à direção correta; nesse caso, a pessoa que der meia-voJta mais cedo será a mais avançada. Todos já tivemos essa experiência com as contas de aritmética. Quando erramos uma soma desde o início, sabemos que, quanto antes admitirmos o engano e voltarmos ao começo, tanto antes chegaremos à resposta correta. Não há nada de progressista em ser um cabeça-dura que se recusa a admitir o erro. Penso que, se examinarmos o estado atual do mundo, é bastante óbvio que a humanidade cometeu algum grande erro. Tomamos o caminho errado. Se assim for, devemos dar meia-volta. Voltar é o caminho mais rápido.

A segunda coisa a dizer é que estas palestras ainda não tomaram o rumo de uma "conversa fiada sobre religião". Não chegamos ainda no Deus de nenhuma religião verdadeira, muito menos no Deus dessa religião específica chamada cristianismo. Tudo o que temos até aqui é Alguém ou Algo que está por trás da Lei Moral. Não lançamos mão da Bíblia nem das igrejas: estamos tentando ver o que podemos descobrir por esforço próprio a respeito deste Alguém. Quero, inclusive, deixar bem claro que essa descoberta é chocante. Temos dois indícios que dão prova desse Alguém. Um deles é o universo por ele criado. Se fosse essa a nossa única pista, teríamos de concluir que ele é um grande artista (já que o universo é um lugar muito bonito), mas que também é impiedoso e cruel para com o homem (uma vez que o universo é um lugar muito perigoso e terrível). O outro indício é a Lei Moral que ele pôs em nossa mente. E uma prova melhor do que a primeira, pois conhecemo-la em primeira mão. Descobrimos mais coisas a respeito de Deus a partir da Lei Moral do que a partir do universo em geral, da mesma forma que sabemos mais a respeito de um homem quando conversamos com ele do que quando examinamos a casa que ele construiu. Partindo desse segundo vestígio, concluímos que o Ser por trás do universo está muitíssimo interessado na conduta correta - na lealdade, no altruísmo, na coragem, na boa fé, na honestidade e na veracidade. Nesse sentido, devemos concordar com a visão do cristianismo e de outras religiões de que Deus é "bom". Mas não vamos apressar o andar da carruagem. A Lei Moral não embasa a ideia de que Deus é "bom" no sentido de indulgente, suave ou condescendente. Não há nada de indulgente na Lei Moral. Ela é dura como um osso. Exorta-nos a fazer a coisa certa e parece não se importar com o quanto essa ação pode ser dolorosa, perigosa ou difícil. Se Deus é como a Lei Moral, ele não tem nada de suave. De nada adianta, a esta altura, dizer que um Deus "bom" é um Deus que perdoa. Estaríamos indo depressa demais. Só uma pessoa pode perdoar, e não chegamos ainda a um Deus pessoal — só a um poder que está por trás da Lei Moral e se parece mais com uma mente do que com qualquer outra coisa. Mas ainda seria improvável dizer que se trata de uma pessoa. Caso se trate de uma pura mente impessoal, não há sentido algum em pedir que ela nos dê uma certa folga e nos desculpe, da mesma forma que não há sentido em pedir que a tabuada seja tolerante com nossos erros de multiplicação. Nesse caminho, encontraremos a resposta errada. Tampouco adianta dizer que, se existe um Deus assim - uma bondade impessoal e absoluta -, você não precisa gostar dele nem se preocupar com ele. Afinal, a questão é que uma parte de nós está ao lado dele e realmente concorda com ele quando desaprova a ganância, as bai-xezas e os abusos humanos. Talvez você queira que ele abra uma exceção no seu caso e o perdoe desta vez; mas no fundo sabe que, a menos que esse poder por trás do mundo realmente deteste inabakvelmente esse tipo de comportamento, ele não pode ser bom. Por outro lado, sabemos que, se existe um Bem absoluto, ele deve detestar quase tudo o que fazemos. Este é o terrível dilema em que nos encontramos. Se o universo não é governado por um Bem absoluto, todos os nossos esforços estão fadados ao insucesso a longo prazo. Se, no entanto, ele é governado por esse Bem, fazemo-nos inimigos da bondade a cada dia e o panorama não parece dar sinais de melhora no futuro. Logo, nosso caso é, de novo, irremediável - inviável com ou sem ele. Deus é o nosso único alento, mas também o nosso terror supremo; é a coisa de que mais precisamos, mas também da qual mais queremos nos esconder. E nosso único aliado possível, e tornamo-nos seus inimigos. Certas pessoas parecem pensar que o encontro face a face com o Bem absoluto seria divertido. Elas devem pensar melhor no que dizem. Estão apenas brincando com a religião. O Bem pode ser o maior refúgio ou o maior perigo, dependendo de como reagimos a ele. E temos reagido mal.

Enfim, a terceira coisa que tinha a dizer. Quando decidi dar todas estas voltas para chegar a meu verdadeiro assunto, nunca tive a intenção de lhes pregar uma peça. Meu motivo foi outro: foi que o cristianismo só tem sentido para quem teve de encarar de frente os temas tratados até aqui. O cristianismo exorta as pessoas a se arrepender e promete-lhes o perdão. Consequentemente (que me conste), ele não tem nada a dizer às pessoas que não têm a consciência de ter feito algo de que devem se arrepender e que não sentem a urgência de ser perdoadas. E quando nos damos conta da existência de uma Lei Moral e de um Poder por trás dessa Lei, e percebemos que nós violamos a Lei e ficamos em dívida para com esse Poder — é só então, e nunca antes disso, que o cristianismo começa a falar a nossa língua. Quando você sabe que está doente, dá ouvidos ao médico. Quando perceber que nossa situação é crítica, começará a entender a respeito do que os cristãos estão falando. Eles nos oferecem uma explicação de por que nos encontramos em nosso estado atual, de odiar o bem e também de amá-lo; de por que Deus pode ser essa mente impessoal oculta por trás da Lei Moral e, ao mesmo tempo, uma Pessoa. Explicam que as exigências dessa lei, que nem eu nem você conseguimos cumprir, foram cumpridas por Alguém, para o nosso bem; que Deus mesmo se fez homem para salvar os homens de sua própria ira. E uma velha história, e se você quiser esmiuçá-la poderá consultar pessoas que, sem dúvida nenhuma, têm mais autoridade do que eu para falar dela. Tudo o que faço é pedir a todos que encarem os fatos — que compreendam as perguntas para as quais o cristianismo pretende oferecer respostas. Os fatos amedrontam. Gostaria de poder falar de coisas mais amenas, mas devo declarar o que penso ser a verdade. Evidentemente, penso que, a longo prazo, a religião cristã traz um consolo indescritível; mas ela não começa assim. Ela começa com o desalento e a consternação que descrevi, e é inútil tentar obter o consolo sem antes passar pela consternação. Na religião, como na guerra e em todos os outros assuntos, o consolo é a única coisa que não pode ser alcançada quando é buscada diretamente. Se você buscar a verdade, encontrará a consolação no final; se buscar o consolo, não terá nem o consolo nem a verdade — terá somente uma melosidade vazia que culminará em desespero. Muitos entre nós já nos recuperamos da euforia de antes da guerra em matéria de política internacional. E hora de fazer a mesma coisa com a religião.

(Fonte: LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e Simples. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.p. 5-44).

sábado, 19 de setembro de 2015

GRUPO DE ESTUDO COSMOVISÃO CRISTÃ - 2º ENCONTRO

Nosso encontro será dia 17/10/2015 (terceiro sábado de outubro), as 16:30horas, na AD de Soledade 2, rua Angra dos Reis, S/N, Natal-RN.

Para o segundo encontro do grupo de estudo Cosmovisão Cristã, vamos tomar como texto base parte do capítulo 4 do livro Verdade Absoluta, de Nancy Pearcey: "Sobrevivendo no período espiritualmente estéril". 

Nesse capítulo, a autora conta um pouco de seu testemunho pessoal, especialmente na adolescência, quando ela teve contato com literaturas seculares e, posteriormente, com os escritos de Francis Schaeffer. Ela também escreve sobre a necessidade de se construir uma cosmovisão cristã, e uma cultura, a partir da história bíblica da Criação, da Queda e da Redenção em Jesus Cristo. Ou seja, como dito pelo professor de ciência política David Koyzis (ver link), "estabelecer e consolidar as instituições a fim de levar esta história, visando explorar as implicações dela para toda a vida e ver ela entregue à geração mais jovem. Isso significa que tanto a educação e o evangelismo devem ser as principais prioridades para a comunidade cristã.". Segue o texto:

Sobrevivendo no Período

espiritualmente estéril
"[Uma cosmovisão cristã] envolve três dimensões fundamentais: a boa
criação original, a perversão dessa criação pelo pecado e a
restauração dessa criação em Cristo."
Aldert Wolters

"Em minha adolescência,fui procurar livros sobre cristianismo na biblioteca da universidade, vagando pelos corredores como uma criança na floresta. Havia acabado de concluir o Ensino Fundamental, quando tivera uma aula de história intelectual ensinada por um professor que era ateu militante. Para mim, isso não tinha importância, visto que eu já rejeitara a fé cristã em que fora criada e estava à procura de minha própria verdade. Até tinha feito um trabalho acadêmico para a classe sobre as razões de eu não considerar o cristianismo digno de crédito.
Mas, para minha grande surpresa, quando ele leu o trabalho, o próprio professor ateísta me exortou a ir mais devagar:"Certifique-se de que você sabe o que está rejeitando antes de tentar algo novo", disse-me ele. "Por que você não pesquisa alguns livros sobre filosofia cristã antes de rejeitar o cristianismo?"
Ele me garantiu que era perfeitamente possível ser "cristão de inclinação liberal" (ou, de forma inversa,"ateu de mente fechada"), assim eu não precisava criticar com tanta severidade minha formação familiar para fazer uma investigação honesta e imparcial da verdade.
Sem nunca ter ouvido falar que havia filosofia (em vez de teologia) cristã, dirigi-me à biblioteca da universidade e procurei no fichado o título "Filosofia — Cristã". Indo em direção às estantes, tirei um livro intitulado Behold the Spírit (Eis o Espírito), de Alan Watts. Quem está familiarizado com a contracultura dos anos sessenta, reconhecerá de imediato que eu caíra numa armadilha: Watts foi figura fundamental na apresentação das religiões orientais para o ocidente, e apesar de o título soar cristão, o tema do livro era que se investigarmos além dos detalhes superficiais, o cristianismo de fato ensina as mesmas coisas que o misticismo oriental. Na realidade, Watts ensinava que todas as religiões são mera janela cultural que se ajusta a um centro comum de crenças — uma "filosofia perene" —, que considera que tudo é emanação do ser divino.
Eu freqüentara a igreja por toda a minha vida (meus pais cuidaram disso) e também a escola primária luterana. Ao longo dos anos, memorizara hinos, versículos bíblicos, os credos e o catecismo luterano, e sou imensamente grata por essa formação. Nunca aprendera nada sobre apologética, ou recebera ferramentas para analisar idéias, ou fora ensinada a defender o cristianismo contra os outros "ismos". Quando li o livro de Watts, fiquei encantada. Por repetidas idas à livraria, levei para casa mais de seus livros, e as obras de Aldous Huxley (que promovia a mesma "filosofia perene") e de Teilhard de Chardin (que oferecia um evolucionismo espiritual místico).2
A única pessoa que olhava por cima do meu ombro para ver o que eu lia e oferecia uma perspectiva crítica era meu problemático irmão mais velho Karl. Ele era irritante o bastante para dizer que o conteúdo desses livros divergia tremendamente do cristianismo ortodoxo. Mas claro que era por isso mesmo que eram fascinantes. Se eu pudesse explorar as idéias religiosas exóticas e, ao mesmo tempo, agarrar-me ao genuíno cerne místico do cristianismo, como prometiam esses livros, tanto melhor seria.
O episódio ilustra uma das razões mais importantes para desenvolver uma cosmovisão cristã: proteger-se da assimilação inadvertida de filosofias estranhas. Como tantos jovens, eu conhecia o teor da Bíblia, mas não fazia idéia de como relacionar a doutrina bíblica ao reino das idéias e ideologias. Quando entrei no mundo intelectual fora do círculo da família e da igreja, eu era um alvo fácil. Não dispunha de nenhuma ferramenta conceituai para repelir os desafios à fé.
"Estai sempre preparados para responder [fazer uma defesa] com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós", diz Pedro (1 Pe 3.15). A palavra grega apologia (o radical da palavra apologética) quer dizer "defesa" e era em sua origem um termo legal; significava a resposta do acusado ao promotor público em sala de tribunal. Mais tarde, o mesmo termo foi usado para referir-se aos primeiros apologistas cristãos — teólogos treinados para defender a nova fé contra o paganismo excessivo do Império Romano.
Entretanto, defender a fé não era tarefa exclusiva dos apologistas profissionalmente treinados. Da mesma maneira que todos os cristãos são chamados para evangelizar, assim todos têm a responsabilidade de aprender a dar as razões (ou explicar, ou responder, ou fazer uma defesa) que apóiem a credibilidade da mensagem do evangelho. Ao "traduzir" a teologia cristã numa linguagem contemporânea, podemos pô-la lado a lado com outros sistemas de pensamento e mostrar que oferece um relato da realidade mais consistente e abrangente.
Há poucos meses vi um anúncio inteligente que apresentava um professor caracteristicamente universitário encarando o leitor com raiva, em cuja legenda se lia: "Conheça o primeiro professor universitário de seu filho. Ele é professor de inglês, ateísta e marxista, que arrasa os crentes calouros".3 Esta é de fato a imagem que deveria vir à mente dos pais cristãos quando enviam seus filhos a universidades seculares. Hoje, a apologética básica tornou-se habilidade crucial para a simples sobrevivência. Sem as ferramentas da apologética, os jovens podem ter firmes bases de estudo e doutrina bíblica; porém, mesmo assim, tropeçam indefesos quando encaram o mundo secular sozinhos. A tragédia é representada inúmeras vezes quando os adolescentes cristãos arrumam as malas, despedem-se dos pais e vão para universidades seculares, apenas para perder a fé antes de se formarem, tornando-se presas das mais recentes novidades intelectuais.

O Mistério do Proibido
Como muitos outros apanhados na contracultura dos anos sessenta e setenta, mergulhei na filosofia oriental, explorei o existencialismo, li as feministas, experimentei drogas e "descobri" que a verdade era relativa e subjetiva. Claro que para alguns adolescentes a contracultura foi mera diversão e brincadeira, mas para mim foi uma procura séria pela verdade e significado. Experimentei drogas alucinógenas só depois de ler livros sobre o assunto escritos por filósofos como Aldous Huxley, que recomendava drogas como meio de entrar na consciência cósmica. Em As Portas da Percepção, ele prometeu que usar alucinógenos abriria a "válvula redutora" da racionalidade comum que restringe nossa percepção ao tedioso mundo cotidiano. Inspirado por Huxley, mergulhei em drogas psicodélicas como parte da busca filosófica por horizontes mais amplos da verdade.
E estranho quando olho da perspectiva de hoje, mas li A Morte da Razão, de Francis Schaeffer, primeiro porque pensei que era outro livro sobre drogas. Antes mesmo de ouvir falar em L'Abri, topei com a primeira edição britânica do livro, cuja ilustração de capa era um pouco sombria e sinistra. E o título prometia exatamente o que eu estava procurando —, liberação da grade tediosa da racionalidade comum. Sim, eu quero "a morte da razão",pensei quando apanhei o livro. Claro que logo vi que o tema de Schaeffer é de modo preciso o oposto: a irracionalidade pós-moderna é um beco sem saída, e só o cristianismo oferece uma resposta logicamente consistente às perguntas filosóficas básicas da vida.
Precisamos ter certeza de que nossos filhos tenham essa mesma convicção gravada na mente: o cristianismo é apto a defender os seus adeptos, quando desafiado no mercado de idéias. Não basta ensinar os jovens crentes a fazer regularmente o devocional, seguir um programa de memorização da Bíblia e unir-se a um grupo cristão na universidade.Também precisamos prepará-los para responder aos desafios intelectuais que eles enfrentam em sala de aula. Antes de entrarem para a faculdade, eles devem conhecer bem todos os "ismos" que encontrarão, desde o marxismo, passando pelo darwinismo até chegar ao pós-modernismo. É melhor que os jovens crentes conheçam estas idéias por pais, pastores e líderes de mocidade de confiança, que podem treiná-los em estratégias para analisar as outras ideologias.
Ao menos essas ideologias perdem o encanto do mistério de coisas proibidas. Quando eu era adolescente, minha irmã mais velha me contou em linhas gerais alguns mistérios da cultura — como a evolução e o relativismo ético —, e lembro-me de como estas idéias ficaram mais fascinantes só porque eram algo que "a mãe nunca me contou isso". A metodologia dominante em muitas escolas e igrejas cristãs é proteger as crianças de ideologias não-bíblicas, e em parte isso é educacionalmente sadio. Faz sentido proteger as crianças até que estejam prontas para lidar com idéias complexas.Todavia, em muitos casos, os estudantes nunca são expostos a outras idéias no ambiente familiar, nas igrejas ou escolas cristãs. Por conseguinte, vão para o mundo sem estarem preparados para as batalhas intelectuais que logo enfrentarão, sobretudo nas faculdades seculares.

Sem Cortina de Fumaça
Quando estes jovens são confrontados em sala de aula por idéias novas e plausivelmente íntegras, talvez percebam que as pessoas em quem confiavam estavam escondendo algo deles. Podem supor que os pais e professores não criticaram as outras idéias, porque não há boa crítica contra elas. Talvez concluam que eles não mostraram como defender o cristianismo, porque é indefensível.
Os estudantes também não obtêm muita ajuda de grupos cristãos na universidade. O grupo com que me associei depois de minha conversão era espiritualmente dedicado a Deus, mas excessivamente anti-intelectual. Como nova crente, havia lutas em minha alma contra os "ismos" que me foram tão sedutores nos dias anteriores à conversão, mas o grupo não sabia dar apoio. Certo dia, quase vencida pelo relativismo influente ensinado nas aulas de sociologia, busquei conselho de um dos líderes do grupo, pedindo de modo desesperado algumas ferramentas intelectuais para defender a opinião de que há a verdade genuína e objetiva; caso contrário, como ter certeza de que o cristianismo é a verdade? Sua resposta foi conduzir a conversa para fora do território intelectual e entrar no conhecido território espiritual: "Nancy, parece que você está com problemas relacionados à certeza de salvação".
Mas eu tinha certeza de que fizera o que era necessário para a salvação: em minha conversão, cumprira o procedimento necessário, pedindo a Jesus que pagasse o preço por meus pecados, que é tudo que Deus exige. Minhas preocupações não eram teológicas. Minha luta era com dúvidas e reconsiderações até sobre a existência de Deus, causadas pela atmosfera quase sufocante do relativismo em sala de aula.
Apesar do estereótipo comum, as questões intelectuais nem sempre são mera cortina de fumaça para problemas espirituais ou morais. A fim de ser eficaz em preparar os jovens e profissionais para enfrentarem os desafios de uma sociedade secular altamente culta, a igreja precisa redefinir a missão de pastores e líderes de mocidade e incluir ensinamentos sobre apologética e cosmovisão. Precisamos parar de repelir objeções à fé ta-chando-as de mero subterfúgio espiritual.Temos de nos preparar para dar o que Schaeffer chamou de "respostas honestas a perguntas honestas".
Quando os Estados Unidos eram uma nação jovem, o ministério das igrejas era integrado por membros bastante cultos da comunidade. A congregação os observava e respeitava suas aptidões intelectuais.Todavia, hoje, as pessoas que estão nos bancos da igreja são tão cultas quanto o pastor; entre a população em geral, o ministério pode até ser menosprezado por ministros limitadamente formados. Neste clima, é imperativo que os seminários bíblicos ampliem a formação pastoral e incluam cursos sobre história intelectual, instruindo os futuros pastores a fazer comentários críticos sobre as ideologias dominantes de nossos dias. Os pastores têm de fornecer liderança intelectual às congregações, ensinando apologética no púlpito. Toda vez que o ministro evangélico apresenta um ensino bíblico, ele também deveria instruir a congregação sobre os modos de defender tal ensin contra as principais objeções que possam ocorrer. Uma religião que evi a tarefa intelectual e se retira para o reino terapêutico das relações e sentimentos pessoais não sobreviverá no campo da batalha espiritual de hoje.

Cosmovisão Envolvente
Passemos agora ao centro desta seção do livro. Vamos lhe dar a chance de praticar a construção de uma cosmovisão. A grade criação, queda, redenção é útil para diagnosticar as tradições teológicas, como vimos em capítulos anteriores.Também fornece o andaime para construir uma perspectiva cristã sobre qualquer tópico, além de servir de grade para analisar outras cosmovisões.
Em qualquer campo, o modo de construir uma perspectiva de cosmovisão cristã é fazer três conjuntos de perguntas:

1. CRIAÇÃO: Como este aspecto do mundo foi criado em sua origem? Qual era sua natureza e seu propósito originais?

2. QUEDA: Como a criação foi torcida e retorcida pela queda? Como foi corrompida pelo pecado e pelas falsas cosmovisões? Sem Deus, a criação tende a ser divinizada ou endemoninhada, ou seja, torna-se ídolo ou demônio.

3. REDENÇÃO: Como podemos colocar este aspecto do mundo sob o senhorio de Cristo, restaurando-o ao propósito para o qual foi originalmente criado?

Apliquemos estas categorias a algumas áreas-chave: educação, família e uma ampla teoria social cristã.

Consertando as Ruínas
As Escrituras exortam os pais a transmitir as verdades bíblicas à geração seguinte. Quando os israelitas estavam postados para entrar na Terra Prometida, Moisés enfatizou a necessidade de transmitir a herança religiosa aos filhos: "Ensinai-as [estas minhas palavras] a vossos filhos, falando delas assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e deitando-te, e levantando-te" (Dt 11.19). A linguagem descreve a imagem de famílias transmitindo a fé por ensino formal e por conversas cotidianas.
Em todos os períodos da história, os cristãos têm se encarregado seriamente da educação, fundando escolas, promovendo a alfabetização e preservando a herança literária da cultura em que vivem. Depois da queda de Roma, foram os monges que preservaram as grandes obras-primas literárias e filosóficas do mundo clássico, copiando de modo meticuloso manuscritos antigos, bem como comentários e interpretações para explicar o significado do texto.3 Os reformadores preconizaram o sacerdócio de todos os crentes — a responsabilidade de cada um saber e entender a Bíblia — e fundaram escolas de catecismo para ensinar os princípios da fé às crianças desde tenra idade. Quando os puritanos desembarcaram no litoral americano e começaram a clarear a mata, em apenas seis anos já tinham fundado a primeira universidade (Harvard) para instruir os jovens no ministério e liderança política.
Como aplicamos as categorias da criação, queda e redenção à educação? A criação afirma que as crianças são criadas à imagem de Deus, o que significa que elas têm a grande dignidade de ser criaturas com a capacidade ao amor, moralidade, racionalidade, criação artística e todas as outras aptidões exclusivamente humanas. A educação tem de discursar sobre todos os aspectos do ser humano. Não podemos nos contentar com uma metodologia behaviorista que trata os estudantes como máquinas complexas de estímulo-resposta. Nem podemos adotar uma metodologia construtivista, que trata os estudantes como organismos que se adaptam ao meio em que estão, usando conceitos como meras ferramentas para organizar a experiência subjetiva. O cristianismo oferece a base para uma visão mais sublime da natureza humana que qualquer outra cosmovisão que comece com forças impessoais que operam por acaso.6
A visão bíblica da natureza humana também é solidamente realística. A doutrina da queda nos ensina que as crianças são, como todos nós, propensas ao pecado e necessitadas de orientação moral e direção intelectual. Em conseqüência da queda, Deus deu revelação verbal que nos permite ordenar a vida segundo verdades infinitas e universais, que, do contrário, estariam indisponíveis a criaturas caídas e finitas. Os educadores cristãos não aceitarão o otimismo do Iluminismo que diz que a razão simples, sem a revelação divina, é capaz de alcançar uma visão divina do mundo. Nem aceitaremos a noção romântica de que as crianças vêm para a terra naturalmente inocentes,"arrastando nuvens de glória". Estas duas filosofias negam a realidade da queda e geram métodos progressivos de educação que se abstêm de ensinar aos estudantes o que é verdadeiro ou falso, o que é certo ou errado, e esperam que eles descubram suas próprias "verdades".7
Redenção significa que o alvo da educação é preparar os estudantes para assumir sua vocação em obediência ao mandato cultural. Cada criança deve entender que Deus lhe deu talentos especiais para fazer uma contribuição única para a tarefa da humanidade em inverter os efeitos da queda e ampliar o senhorio de Cristo no mundo. Como escreveu o poeta John Milton, a meta do aprendizado "é consertar as ruínas de nossos primeiros pais".8 Para fazer isso, toda área de estudo deve ser ensinada segundo uma perspectiva solidamente bíblica, de forma que os estudantes entendam as interconexões entre as disciplinas e descubram por si mesmos que toda a verdade é a verdade de Deus.
Ao mesmo tempo, devemos estar alerta contra os falsos pontos de vista da redenção que formam várias teorias educacionais hoje. Os proponentes de quase toda ideologia buscam ganhar uma posição segura em sala de aula, porque sabem que a chave para moldar o futuro é moldar a mente das crianças. Talvez tenhamos de agir defensivamente em relação aos métodos de meditação e imagem dirigida da Nova Era aplicados em sala de aula (redenção pelo cultivo de uma consciência mais alta); ou o abuso de técnicas terapêuticas para que os estudantes mudem de atitude e se ajustem a algum programa de trabalho progressivo (redenção por ajustes psicológicos); ou programas de justeza política e multiculturalismo (redenção por políticas esquerdistas).4 Muitos pedagogos já não definem que educar seja ajudar os estudantes a aprender habilidades e obter conhecimento, mas capacitá-los a alistar-se em causas sociais aprovadas. A medida que a cultura americana se afasta de sua herança cristã, a sala de aula pública está se tornando um campo de batalha para ideologias concorrentes, de forma que uma de nossas tarefas mais importantes é ensinar os estudantes a identificar e comentar criticamente as cosmovisões.

Reequipando a Família com Ferramentas
Como a grade da criação, queda e redenção nos oferece ferramentas para elaborar um conceito bíblico da família? Na qualidade de instituição social básica, a família funciona de laboratório para numerosas experiências sociais.Todo visionário político sonha com um esquema que reequipe a família com novas ferramentas, abolindo-a completamente em prol de ou um estatismo radical ou um individualismo radical.
O estatismo é um tema recorrente desde o surgimento da cultura cidental. Até certo ponto surpreendente, o pensamento político e social ocidental é hostil ao papel da família no que propõe ser a sociedade ideal. Os intelectuais seculares desde Platão, Rousseau, B. F. Skinner a Hilary Clinton se encantam com a idéia de pôr a criança diretamente aos cuidados do Estado e não da família.
Para nos opormos a tais esquemas utópicos, temos de começar com a criação. A doutrina bíblica da criação fala que a família é o padrão social que é original e inerente à natureza humana. É normativa para todos os tempos e todas as situações históricas. Embora haja variedade nos detalhes, a natureza essencial da família não pode ser remodelada à vontade. Todo esquema utópico que busque lançar a família na lata do lixo da história estará trabalhando contra a própria natureza humana.
Os utopistas que negam a criação também rejeitam a queda, rejeitando totalmente a idéia de que a natureza humana é corrupta e propensa ao mal. Em vez disso, redefinem todos os problemas sociais como desordens temporárias que podem ser solucionadas pela educação e engenharia social. "Os utopistas são motivados pelo desejo de superar os efeitos da queda sem confiar na redenção divina", escreve Bryce Christensen em Utopia Against the Family (Utopia contra a Família). "A maioria dos utopistas deseja ser como deus' (ver Gn 3.5) pela obstinação e engenharia humana, e não pelas bênçãos dos céus."1"
Assim, nasce uma imagem sedutora de redenção pela criação de um novo jardim do Éden, um retorno ao estado original de inocência. No famoso romance de B. F. Skinner, Walden II, o fundador descreve que sua comunidade utópica é "uma melhoria do Gênesis"."
De modo irônico, quase que toda tentativa histórica de melhorar o Gênesis terminou em um estado coercitivo e totalitário. Por quê? Porque, ao contrário da visão utópica, o pecado é real e não pode ser simplesmente manejado fora da existência. Por isso, o Estado sempre tem de forçar as pessoas a cumprir seus esquemas utópicos. A destruição da família é mera ferramenta para aumentar o poder do governo sobre os indivíduos, eliminando lealdades concorrentes, no esforço de criar submissão total ao Estado. Para defender a família contra programas estatistas de trabalho, precisamos argumentar de maneira incisiva que só o drama bíblico da criação, queda e redenção oferece um relato realístico e humanitário da natureza humana e da estrutura e propósito da família na sociedade."

REFERÊNCIA:

PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta: libertando o Cristianismo de
seu Cativeiro Cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. p. 139-147.